Em dezembro de 1960, quando eu tinha 12 anos, mudei para São Paulo, vindo de Poços de Caldas. Em menos de um mês eu já estava trabalhando como office-boy em uma instituição que ficava no que hoje é o centro velho da cidade. Junto comigo foram admitidos outros 4 ou 5 jovens, nascidos ou criados em São Paulo. Na divisão do trabalho todos eles foram designados para serviços internos. Eu, que não conhecia a cidade, fui designado para fazer serviços externos. Minha reação foi da surpresa à indignação: eu não conhecia a cidade, como podiam fazer aquilo comigo?
Por mais de 50 anos eu contei essa história do ângulo do copo meio vazio: como puderam fazer aquilo comigo? Há cerca de 10 anos, ao escrever o meu biográfico eu registrei esse episódio. Mas, graças aos anos de terapia e de busca por autoconhecimento, descobri que havia um copo meio cheio nessa história: de todos os meus colegas quem mais precisava aprender a andar na cidade?
Até há pouco eu acreditava ter duas versões da mesma história e poderia escolher qual delas eu vou contar. Mas, passadas décadas do episódio, qual história eu estou contando realmente?
Pesquisas demonstraram que nossos cérebros estão nos traindo constantemente, transformando nossas memórias sempre que pensamos sobre elas, assim jamais contarei a mesma história.
De acordo com um estudo recente, “suas memórias são alteradas pelo ato de lembrá-las, o que significa que todas as lembranças que temos são coloridas pelas vezes em que lembramos delas”.
Isso me lembrou um processo artístico – pentimento (arrependimento, em italiano), no qual uma alteração é executada numa pintura enquanto sua feitura está em andamento. Esse procedimento é evidenciado por traços do estado anterior do trabalho, que podem mostrar escolhas e ideias descartadas pelo criador quando, por exemplo, este toma a decisão de modificar uma composição. [1]
Como alterei uma parte da minha história a ponto de acreditar, piamente, na versão que hoje eu conto?
A filosofia me socorre: “(…) perspectivismo é a visão filosófica na qual toda percepção e pensamento tem lugar a partir de uma perspectiva que é alterável”[2]. Os fatos ocorreram quando eu tinha 12 anos. Hoje, meu olhar sobre os fatos é filtrado por todas as lentes que adquiri ao longo de seis décadas de vida, e apesar de acreditar que elas estão sempre translúcidas, o meu estado de ânimo, meu nível de autoestima, autoilusão, etc. criam versões diferentes para os episódios.
O fato é que, ao dilema existencial sempre proposto – o passado não existe mais, o futuro está aberto, o único tempo que temos é o presente –, também devo acrescentar que eu posso mudar o meu passado!
[1] Wikipedia
[2] Wikipedia
