Confiança nas barragens e nas empresas – Marcondes Consultoria

Confiança nas barragens e nas empresas

Quem vive mais estressado: aqueles que moram 500 metros abaixo de uma barragem ou aqueles que moram 20, 30 km abaixo dela?

Pois é, caro leitor, surpreenda-se: quem mora perto de uma barragem desenvolve um mecanismo que o impede de estressar-se para que sua vida não seja insuportável. É mais fácil encontrarmos um estressado a quilômetros da tal barragem.

Na construção desse mecanismo, além dos aspectos subjetivos, existem as crenças de que os responsáveis pela edificação e manutenção da barragem são competentes e responsáveis, portanto, as pessoas podem viver e trabalhar próximas dela pois os riscos estão sob controle. Havia confiança.

É certo que esse mecanismo atuava sobre os trabalhadores da Mina do Córrego do Feijão, bem como daqueles que viviam à jusante da fatídica barragem em Brumadinho. Temer, o tempo todo, o rompimento da barragem, faria a vida daquelas pessoas um inferno.

Existe uma palavra que traduz claramente o significado de confiança: previsibilidade. Quando eu confio em alguém, ou em uma instituição, isto significa que eu posso antecipar o seu comportamento. E, se esse comportamento estiver alinhado com os meus valores, crenças e interesses, eu posso dizer que a pessoa, ou a instituição, são confiáveis para mim. Um exemplo simples e corriqueiro, presente nas nossas vidas todos os dias: o semáforo. Imagine, leitor, se não acreditássemos na mensagem que a luz verde ou vermelha nos envia? O trânsito seria um caos completo. Ele flui porque eu acredito que os motoristas do outro lado respeitarão a luz vermelha, portanto, eu acelero em confiança. Como na imensa maioria dos casos, o combinado é cumprido pelas partes, o sistema funciona.

Em Brumadinho o prometido não foi cumprido.

A tragédia de Brumadinho comporta múltiplos ângulos de análise. Aqui, pretendo examinar algumas das crenças que as pessoas tinham em relação à empresa e seus sistemas e instalações. É pacífico que houve um crime e que os responsáveis deverão receber as devidas e merecidas punições. Mas, quais foram exatamente as vítimas desse crime? O psicanalista Contardo Calligaris, em texto publicado na Folha de São Paulo em 18/12/2008, afirma que “todo crime contra as pessoas ou o contra o patrimônio é também (se não sobretudo) um crime contra a confiança, sem a qual, a longo prazo, qualquer coletividade se desfaz”.

Baseado nesse princípio, ele relata a condenação, em 2008, de uma clínica na Itália por efetuar “procedimentos médicos e cirúrgicos desnecessários, mesmo danosos e cruéis, nos pacientes mais indefesos: idosos, doentes terminais, etc.” A clínica havia recebido por tratamentos desnecessários, pouco menos de R$ 8,5 milhões. Condenada por suas práticas, (…) a procuradoria pediu uma multa no valor de R$ 32 milhões, quatro vezes o valor da falcatrua, não como punição abstrata, mas como compensação pelo dano que foi sofrido pela imagem do sistema de saúde italiano, pela imagem da própria Itália e pela comunidade dos cidadãos italianos.”

A justiça italiana nos ensina que a forma como uma organização trata seus clientes, funcionários, fornecedores e a comunidade onde ela está instalada indica que a responsabilidade da Vale vai muito além de qualquer valor calculado com base nos parâmetros usuais de indenização por mortes e danos que ela causou. O intangível – a confiança – sofreu danos incalculáveis! E a Vale deve indenizar, não só as famílias e as comunidades, mas o Brasil. Porque é certo que, agora, os brasileiros confiam menos, não apenas na Vale, mas nas organizações brasileiras. Se, como é o caso de Mariana, a justiça também tardar em punir os culpados, ela própria perderá as parcelas que ainda restam da confiança que os brasileiros têm nela.

É de se lamentar que, num momento em que os brasileiros começam a acreditar mais na justiça – a Operação Lava Jato devolveu parte do crédito que ela havia perdido – um episódio como o de Brumadinho nos remeta para um campo de desesperança e angústia. Exatamente como o que vive as famílias de Santa Maria.

A imprensa noticiou recentemente que a tragédia da Boate Kiss, quando 242 jovens perderam a vida no incêndio, ainda não terminou: “Ao menos seis pais morreram em decorrência de doenças que podem ser relacionadas à perda dos filhos. Familiares vivem rotina de depressão e tentativas de suicídio.” Passados seis anos, os responsáveis não foram julgados e adiam sua ida ao júri através dos conhecidos recursos protelatórios. A comunidade de Santa Maria é vítima da irresponsabilidade dos que causaram a morte de tantos jovens. É preciso haver reparação para todos.

As populações de Mariana, Brumadinho e Santa Maria perderam a confiança nas instituições e nas organizações. O custo desta perda é incomensurável. As indenizações previstas em lei cobrirão uma parte ínfima dos danos causados.

Confiança nas barragens e nas empresas
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Odino Marcondes


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2 opiniões sobre “Confiança nas barragens e nas empresas

  • Avatar
    10 de fevereiro de 2019 em 10:17
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    Tão bom ler um texto inteligente.Não esquecendo da parcela de contribuição Que o delito da confiança desmedida imprime ao “confiador”nem semore confiante e esclarecido…bela discussão. ..

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  • Avatar
    20 de fevereiro de 2019 em 13:59
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    Caro Odino, excelentes as suas contribuições. Trazer a analogia entre a tragédia de Brumadinho e a “Confiança nas Organizações”, nos acende um grande farol: o de que a Confiança da Vale, assim como, de tantas outras organizações, pressupõe a confiança no Ser Humano. E, infelizmente, é essa confiança que está em crise. Cada um dos diversos Stakeholders nas suas posições – dirigentes, especialistas e empresas de auditoria, etc – dando a palavra que tudo está bem e sob controle, quando na verdade a realidade era outra, uma vez que riscos iminentes já haviam sido sinalizados. E o risco de não se acreditar mais no que o outro diz deságua numa profunda “desconfiança”. Como você bem colocou: levará muito tempo para se resgatar a confiança perdida, seja no caso de Brumadinho ou de inúmeros outros contextos que permeiam o ambiente corporativo ou fora dele. Parabénsssss pela rica reflexão !!! Um grande abraço

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