Um episódio que seria corriqueiro – briga de torcidas de futebol no Metrô – acabou extrapolando os limites policiais para resultar na demissão do emprego de uma das envolvidas no caso. A moça – corintiana – estava no vagão junto com outros torcedores a caminho do estádio. Outra moça, palmeirense, entrou no mesmo vagão vestida com a camiseta do seu time. A confusão – com agressões verbais e físicas, ocorreu quando a corintiana exigiu que a outra tirasse a camiseta e o boné com as cores do time adversário. Como o caso foi registrado na delegacia, torcedores palmeirenses conseguiram informações sobre a moça e acessaram sua página no Facebook. Descobriram a empresa na qual trabalhava e, a partir daí, começaram a postar críticas à empresa (!) – uma grande organização de diagnósticos de saúde, por ter em seu quadro a corintiana em questão.

O acontecimento mobilizou o comitê de crise da empresa que acabou por demitir a agressora, por entender que a imagem da empresa estava sendo comprometida, ainda que por razões sem nenhuma relação com a qualidade dos seus serviços.

Durante a Copa do Mundo na Rússia, um episódio de assédio envolvendo brasileiros e jovens russas – elas foram induzidas a cantar músicas em português sem ter noção do sentido pornográfico das letras – resultou na demissão de um deles, depois de ter sido identificado como supervisor em uma companhia aérea.

Sem qualquer julgamento ao comportamento da moça e do supervisor, os episódios são úteis para entender os diferentes planos da vida humana e suas intersecções. Desde sempre, circulamos entre dois espaços: o privado e o público. O que ocorre no privado só interessa ao indivíduo e à sua consciência – seus valores e crenças. Já o comportamento no plano público está sob controle social e, portanto, sujeito às sanções que foram sendo consensadas ao longo do tempo naquela sociedade.

Ocorre que os planos com frequência se sobrepõem, causando dúvidas e, muitas vezes, conflitos. Em outros tempos, o comportamento da corintiana e do supervisor ficaria circunscrito ao grupo diretamente envolvido e, eventualmente, à autoridade policial. As empresas nas quais eles trabalhavam talvez nem ficassem sabendo do ocorrido. Mas, com o advento das redes sociais, o que era restrito, amplificou-se e já não se pode impedir que um comportamento, antes sem qualquer relação com o trabalho, tenha impactos em outros planos da vida do indivíduo e da organização.

Existem comportamentos que, por se darem no âmbito exclusivamente privado, não interessam a ninguém a não ser ao próprio indivíduo. No entanto, mesmo no âmbito familiar e dos relacionamentos pessoais, o indivíduo é cobrado a comportar-se de acordo com padrões daqueles grupos. Quando saímos para os espaços públicos, não perdemos de todo o espaço privado, mas estamos num campo de constante negociação com o outro e a sobreposição acaba variando à medida que nos deslocamos de um grupo para o outro, ou assumimos novos papéis nesses relacionamentos. Em alguns casos, a sobreposição dos espaços atinge 100%, quando assumimos funções públicas, por exemplo.

Em 2004, o jornalista do New York Times Larry Rohter publicou matéria sob o título “Ato de bebericar do líder brasileiro se torna preocupação nacional”. Lula reagiu furiosamente, exigindo a expulsão do jornalista do Brasil.

O hábito de beber é um exemplo interessante pelos diferentes níveis de impacto social que ele pode causar. Em princípio, só interessa àquele que bebe, entretanto, se ele é membro de uma família, o seu comportamento desdobra-se e traz consequências para aqueles que dele dependem e/ou com ele se relacionam. Na sequência, se tendo bebido ele decide dirigir seu carro, essa decisão pode impactar tragicamente na vida de terceiros. Por último, se ele ocupa uma função pública importante – a presidência da república – ficar incapacitado para tomar decisões em uma emergência pode ter consequências sérias para a vida de milhares de pessoas. Assim, mesmo na intimidade do seu palácio, do seu quarto, um presidente da república tem seus espaços completamente sobrepostos.

A briga das torcidas e o assédio às russas, assim como tantas outras situações, têm demonstrado que os limites entre os espaços são cada vez mais tênues. À onipresença de câmeras, celulares, a contínua e intensa postagem nas redes sociais, some-se uma exacerbação de comportamentos egóicos e temos então a diluição dos limites entre os espaços, com sérias consequências para os envolvidos. Que o digam a corintiana e o supervisor.